terça-feira, 8 de dezembro de 2015

TARDE


Então, encontrei este texto de 1977, em meu garimpo em gavetas e caixinhas.
Escrevi isso numa dessas tardes daquele ano, vindo da escola.
Era um tempo em que eu andava uns dois quilômetros a pé para ir ao colégio. Tinha 16 anos e a vida se passava muito mais na minha cabeça do que em qualquer outro lugar. Dada à minha timidez, pouca coisa acontecia no mundo real e eu estava formulando a vida, ainda. Estava apaixonada e isso tornava o caminho quase uma travessia da infância para a vida adulta, pois ia bem devagar para admirar tudo, maravilhar-me com a natureza e descobrir que estar apaixonada me fazia amar todas as criaturas, todas as pessoas e viver em êxtase (e quase ser atropelada também)!
Meus pensamentos eram tão intensos que, em casa, eu achava que iam ouvi-los...
Achei alguns erros de gramática e de ortografia, claro... comecei frase com pronome, usei gírias, da época... Mas só me atrevi a corrigir alguma pontuação (não posso alterar o texto da Fernanda de 16 anos, não é mais meu, ou melhor é tão meu que me construiu, como mudá-lo?).


SP , 28 de Agosto de 1977.

TARDE

Fecho o s olhos, amor, e vejo os teus. Abro a boca, amor, e sorrio de nada. Te amo.
Andando na rua, canto canções em meu pensamento, faço orações em meu movimento, meus pés me levam certo... te gosto.
Choveu: o chão tá molhado, o ar cheira terra fresca e fértil; meus pés não vacilam levam-me certo e longe... Tem uma árvore; a pequena garoa renitente do inverno derruba, como no outono, flores lilases da primavera. É Deus. Tá ali, vivo, forte, grande, pequeno! Negando o calendário imutável, as estações distintas, reafirmando que a vontade D’Ele é ainda seguida pela natureza.
... Eu ando. Ando por sobre as flores que caíram, quando ainda estava ali atrás, ando num tapete que só Ele soube tecer. E mais uma vez serviu-me!
Você continua nos meus olhos fechados, nos meus lábios sorrindo; cantando em meu pensamento, orando em meu movimento, andando... Comigo, meus pés, meus olhos, meus lábios! Ouço ainda a garoa, que não me molha e o quebrantar das folhas e flores daí de trás que o homem tá pisando. Amo-o (o homem). Lembrei – me de você, te amo ( também).
Tijolo molhado, parado, cansado traz paz aos meus pés molhados, parados, cansados. Quero-te.
Tem pôr, sem sol... Tem luz.
Meus passos apressam-se sem hora: _ Senhora, que horas são? ( 17:30h).
Não corro, não correm. Não morro, mas morrem.
Cheiro alegria no ar, inspiração aos poetas viria, pra mim, só alegria.
Você tava lavando o carro na porta da casa de lá, você tá tocando um disco na discoteca de cá. É bom ver você nos outros; é bom ver os outros em você: amo a ambos.
Tem música. Cantada no pátio do colégio que passa, soada nos pneus do carro que riscam o chão quase varam; param. Tremi, não era você ou era? Fingi não amar o homem do Carro, fingi não amar minha preocupação. Era você, devia ser. Na certa, tremia agora o homem que eu não amei... Nem sei se chora.
Passou. Rachou meu amor por você, trincou. Também, eu nem esquentei em repreender o homem que eu não amei que quase varou, riscou, soou
( tremia agora, na certa).
Mas, amo-te. Ainda é pôr sem sol, continua você em canção, pensamento; oração, movimento. Tem ternura, quente, cura. Aquece o pensamento, envolve o movimento: chega, para, que cara!
... Cansei. Cerrei os olhos; vi você por lá, parado, gamado, sorrindo.
Voltei. Pisei forte no chão passos de pés certos, sem hora, Senhora... Maria. Pensei: quantas Marias eu amo... benditas!
Cheguei. Suada, gamada, molhada, lavada, to aqui. Pequei, chorei, sorri, rezei... eu amo você como sempre te amei. No homem do carro, no pingo da chuva, na rua que escalo, na lua.
Deus, é noite!!

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

MINHA INFÂNCIA


Minha infância tinha muito quintal, muita brincadeira, muito faz-de-conta.
Minha infância tinha litro de leite de vidro, bengala na padaria e café com leite na caneca de ágata.
Nos meus aniversários, tinha bolo no café da tarde e meus irmãos em torno da mesa. Os finais de semana eram na sociedade amigos do bairro, chamada Chacrinha, brincando de pega-pega, esconde-esconde , dançando nas festas juninas ou cantando nas festas dos japoneses. Isso tudo com o “status” de ser a orgulhosa filha do presidente.
Eu me apresentei numa dessas festas, aos cinco ou seis anos, cantando uma música do Jair Rodrigues – Triste Madrugada – com direito à banda me acompanhando... lembro-me de passar a semana toda ensaiando no quintal, tentando dançar desengonçadamente como faziam o Jair e a Elis naquela ocasião, balançando os braços como quem espanta urubus da plantação ou tem a pretensão de alçar vôo.
Que mico delicioso, meus pais orgulhosos na platéia.
Às vezes, projetavam filmes de rolo no salão da Chacrinha e as famílias sentavam-se em cadeiras plásticas para assistir; mil vezes assisti à Paixão de Cristo, com diferentes atores interpretando Jesus... tinha Jesus gordo, Jesus alto, Jesus moreno, Jesus loiro. Todos me faziam chorar e amar mais e mais a Jesus e sua história grandiosa.
Pedíamos guaraná de garrafa no bar. Minha infância tem cheiro de guaraná. No carnaval, também tinha baile na associação, com confete, serpentina e fantasias que a minha mãe costurava.
Aos domingos, tinha a sagrada missa e íamos sozinhos, sem meus pais.
Mamãe sempre na cozinha, atarefada, mas ai de nós se faltássemos à missa. Da família de onze irmãos de meu pai, tínhamos o privilégio de ter um tio padre que nos ensinava muito e era alegre, divertido e carinhoso. Vinha para celebrar todos os eventos religiosos da família, batizados, primeiras comunhões e casamentos e ainda ficava uns dias em nossa casa, hóspede mais que amado.
E sobre minha mãe faltar às missas aos domingos, ele tinha sempre uma palavra misericordiosa e um olhar admirador para aquela mulher que cuidava de tantos filhos: _ primeiro vem a obrigação e depois a devoção. Meu tio tinha seus sermões preferidos para cada ocasião festiva e nós já sabíamos de antemão qual iria ser, então meu irmão mais velho subia num banquinho de madeira e, com toda pompa e circunstância, imitava o titio em sua homilia. Para a primeira-comunhão era este: _ Napoleão, quando se viu sozinho, exilado na ilha de Santa Helena, disse: os melhores dias de minha vida não foram os de minhas vitórias, mas sim o dia da minha primeira comunhão. Octavinho fazia seu ato e nós, os menores, aplaudíamos, ríamos muito e mamãe ralhava com ele, mas também ria no fundo.
Minha infância tinha muito pé no chão, brincar de comidinha, fazer do rodo o marido de uma e da vassoura o marido da outra. Tinha muito correr da mãe com o chinelo na mão por causa das brigas e esconder-se no banheiro com a irmã até que ela se acalmasse, mas nunca apanhei mesmo, era só parte da nossa rotina. Enquanto estávamos presas no banheiro, acabávamos acertando nossas diferenças e fazendo as pazes. Éramos tão felizes e pouco se falava de comprar brinquedos, de ter isso e aquilo. O meu sonho era ter uma árvore com que pudesse conversar como José Mauro de Vasconcelos em Meu Pé de Laranja Lima ou uma boneca como a Emília, que filosofasse sobre todos os assuntos. Monteiro Lobato era meu herói maior, como o Superman das crianças de hoje. Nossas viagens eram todas para Jacareí, mas eram todas novas, diferentes, aguardadas. Era como ir para o Sítio do Picapau Amarelo.
Para desejar um feliz dia das crianças neste ano de 2015, faço questão de dizer aos adultos, aos pais e mães aflitos por fazerem o melhor, que as crianças não precisam de brinquedos caros, não precisam saber a marca e o preço das coisas, não precisam vestir grife. Crianças precisam de tempo para brincar, espaço, atenção, boa companhia, bichos de estimação, cantigas e histórias, precisam sonhar e acreditar; amar e serem amadas. Esta data não precisa ser mais uma exaltação ao consumo, use a sua imaginação e faça uma criança feliz de verdade.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Colcha de retalhos.

A vida não é feita de felicidade.
Ela é como uma colcha de retalhos, com pedaços coloridos de felicidade e outros escurecidos de tristeza e dor. Meu coração anda apertado como se um gigante o tivesse em suas mãos e o espremesse de vez em quando por puro cinismo... Ontem, houve alegria e tristeza mesclada num mesmo dia num degradê intenso de vida que vai do ocre ao maravilha!
Sinto-me "pouca", como muitas vezes, para comportar tanto e tantos sentimentos. Minha respiração falha quando o pensamento foge para o lado dos problemas e preocupações, das perdas e da saudade. Então, eu o puxo de volta para a realidade cheia de motivos para gratidão... para o sorriso e a voz doce dos meus netos, para a saúde e a vida dos que amo, para o fato de eu estar plena de minhas faculdades mentais e ter paz de espírito e consciência tranquila.
O que me dói mais do que tudo é a capacidade de me colocar no lugar do outro e ver (sentir) tanto sofrimento. O que me alegra é chegar em casa depois de um dia útil de trabalho e ainda sentir disposição para me ocupar, carinhosamente, em fazer felizes as pessoas que Deus me confiou!


Fernanda Bega.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Pra Deus, o melhor


Há alguns muitos anos, num tempo em que eu tinha mais fé, não digo em Deus, mas na humanidade, pensei em compor canções para o ritual sagrado da Missa. Eu tinha a pretensão de fazer uma para cada momento, do canto de entrada até o de despedida. Claro que tive a adorável parceria do meu irmão, Beto Zonzini, nessa ousadia...
Por fim, se bem me recordo fiz 3 letras das quais duas entraram para o folheto da igreja que frequentávamos na ocasião (a do ofertório e a da comunhão) e de lá para outros folhetos como acontece com essas músicas, numa tradição oral. Nem tenho nenhum folheto desse e nem achei os rascunhos das letras prontas... A canção do ofertório foi minha preferida e fala muito de como eu gosto de rezar, segue aqui os versos que me recordo, cantando:



Pra Deus, o melhor

(canto do ofertório)


Senhor eu te dou o melhor de mim
O melhor que eu puder
Ainda que eu seja imperfeito
Com erros e pretensões
De mim, eu te dou apenas o bom, o certo, o puro, o leal
Todo amor que eu tiver eu te dou
Meu amor até o final

Senhor, eu te dou o melhor de mim
O mais raro que eu tiver
Ainda que eu tenha imperfeições, vaidades e ambições
De mim, eu te dou apenas o bom, repentes de bem sem igual
Toda vida que eu tiver eu te dou
Minha vida até o final

Nosso sonho se realiza, nossa vida tem mais valor
Quando a gente entrega o coração
Dia a dia pra Deus com amor.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Não será a mesma coisa, mas será algo


Quando as pessoas se reconciliam, quer seja um casal, amigos ou parentes , os outros costumam dizer que a relação “nunca mais será a mesma”... essa expressão é fortemente carregada de sentidos e até procede. Mágoas se perdoam, mas não são esquecidas. A verdade é que se a relação não será a mesma, será outra.
Mil possibilidades se abrem quando você renova um relacionamento com foco no perdão mútuo e aceitação do outro e como diz o sábio filósofo Projota:
o ser humano é falho
hoje mesmo eu falhei
ninguém nasce sabendo
então me deixe tentar.
Claro que se é fato que a relação não será a mesma, também é fato que será diferente e pode ser do jeito que vocês a construírem, sem os erros do passado. O que conta é o amor, o carinho e o sincero propósito de fazer melhor. E, lembrem-se, outra relação é melhor que relação nenhuma ou nada. Invista no amor e na amizade, sempre haverá alegria nisso.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Mais histórias sobre a Dona Leny


Meu pai tinha um funcionário que era da doutrina espírita e tinha por hábito distribuir presentes e cestas de natal aos pobres, pedindo doações em grandes lojas e mercados ou até de pessoas físicas caridosas. Nos anos 80, não sei bem a data, mamãe combinou uma parceria com ele e começou a cadastrar as famílias necessitadas em nossa região. Muitos estranharam pelo fato dela estar ajudando uma ação espírita, sendo ela tão atuante e engajada na comunidade católica, mas nem para ela, nem para ele, isso fazia diferença. O que importava era de verdade o natal farto e feliz que podiam proporcionar para aquelas pessoas.
Chegando próximo ao natal, minha casa ficava lotada de bolas, bonecas, carrinhos e produtos alimentícios e nós ajudávamos, pouco eu confesso, a separar por família o tipo e a quantidade de brinquedos e alimentos. Depois, os que moravam perto vinham buscar em nossa porta e os mais distantes e com dificuldade de locomoção, nós mesmos íamos entregar ou o funcionário do meu pai. Pura alegria. Minha mãe não ficava cansada, ficava feliz!
Nenhum dos dois estava divulgando o Centro ou a Igreja, mas a solidariedade. Não ia junto com as cestas o nome da instituição e sim um cartão de Feliz Natal. Nenhum dos dois tinha tempo para ficar discutindo as divergências de dogmas religiosos e cada um continuou professando a sua fé, em particular. Tenho certeza, no entanto, que Deus olhou para os dois com carinho... Não me recordo o nome daquele funcionário do papai, mas Deus sabe bem.
Entre os mais jovens da família, do bairro, da sociedade enfim , minha mãe pode ser apenas uma velhinha que pouco sai de casa, inativa e dependente.
Para mim, ela é um exemplo de força, doação e desapego material. Das dores da velhice, a pior delas não é a perda da memória do idoso, mas a perda da memória de muitas pessoas que se esquecem tudo o que o idoso fez de bom e útil pela vida afora.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Sobre ter netos...

Sobre ter netos...
Algumas vezes, depois que meus filhos cresceram e começaram a alçar seus voos mais distantes, eu sentia uma nostalgia e uma certeza que, no fundo, eram tristes. A idéia de que os melhores anos da minha vida já tinham realmente passado e que nada que viesse pela frente, nenhuma alegria que a vida reservasse poderia se comparar aos anos da infância dos meus filhos.
Foi então que tive netos.
E os netos são uma alegria indescritível e um bônus da vida; é como se Deus me dissesse, num decreto : tu criaste os filhos que te confiei com todo o zelo e responsabilidades necessários, muitas vezes mal tendo tempo de sorrir com eles... pois, com seus netos, poderás sorrir e amar sem o peso da total responsabilidade por sua educação e formação. Serás feliz novamente, por merecimento.
Obrigada, Senhor, esta vida é uma aventura imperdível!


Fernanda Bega

quinta-feira, 16 de julho de 2015

VIVO, LOGO MORREREI


Pelo que leio hoje em dia, a carne vermelha mata, o leite e seus derivados matam, a farinha de trigo mata, o açúcar mata, o sal mata, as gorduras matam, os refrigerantes matam, enfim tudo o que se comia e que sempre se comeu em nossas famílias, calma e tranquilamente, hoje mata.
Triste isso. As pessoas se comprazem em te dizer que o que você usa para alimentar seu corpo é ruim, mortal e venenoso.
Na minha humilde opinião, o que realmente mata são os excessos, as compulsões, os vícios por assim dizer. O que mata é carne demais, gordura demais, inveja demais, rancor demais. Assim como alface demais e ovo e café; remédios e chá demais. Até sexo demais acho que mata! Mais curioso ainda é que ninguém fala do álcool, ninguém. Álcool demais, para todos em todo lugar todo o tempo... Esse assassino que muito antes de matar o usuário, mata os relacionamentos, as famílias.
Sempre é conveniente lembrar que o mal não é o que entra pela boca, mas o que sai dela. As palavras rancorosas, as ofensas ditas de boca cheia que atingem as maiores fragilidades das pessoas. Vocês, que usam sua sagacidade e inteligência, tão graciosamente recebidas de Deus para proferir palavras e julgamentos que magoam os mais frágeis, os mais igênuos, os idosos e crianças, os puros de coração.
Aí está o mal. Aquilo que nos mata é o desamor, a prepotência e arrogância, a certeza de ser melhor e mais sábio que todos os outros seres viventes neste planetinha azul. Isso, com certeza, nos matará muito mais rápido que as impurezas que talvez nós consumamos como partícipes da cadeia alimentar que todos somos.
O alimento espiritual : a boa leitura, a boa música, o bom conselho. Até um bom jejum ou abstinência, vez ou outra. Um diálogo proveitoso. O estudo da fé, da sociologia, da filosofia e das religiões... o culto ao silêncio, às orações e à caridade, estes sim alimentos que posso garantir sejam saudáveis para qualquer pessoa, de qualquer idade, cultura ou região do mundo em que viva. Com nossos espíritos fortalecidos acredito que não veremos acréscimo algum em maldizer ninguém e nem os seus hábitos ou costumes , ao contrário nos sentiremos felizes em desejar que todos sejam plenamente saudáveis e plenamente saciados em suas necessidades fisiológicas e espirituais e que busquem para si, dentro dos seus valores, o melhor amor, o melhor amigo, o melhor alimento e a melhor das vidas.

(Como sempre diz o meu marido, repetindo um autor famoso, o importante não é como se morre e sim como se vive).



FERNANDA BEGA.

terça-feira, 26 de maio de 2015

CANTO DO MUNDO


Eu canto num canto do mundo,
de um azul profundo
uma música linda

Canto aqui e agora
como já fiz lá fora
outra música, ainda

O mundo reage ao meu canto
reação em cadeia
o azul se incendeia

O laranja se encanta e o Sol se reparte
em um vermelho forte que invade o norte
respinga no Sul, toca e retoca,
arremata em azul.

Eu canto num canto do universo
de um azul singelo
apenas um verso

O canto se esgueia no azul, se pinta de cores
de luzes e amores
retorna pra mim
o mundo reage de novo: reação em cadeia*
num canto do mundo , num giro sem fim.



Fernanda Bega.

sábado, 23 de maio de 2015

Ah, poeta...


Nada tão docemente amargo quanto o coração de um poeta,
nem tão caro quanto seu espírito tangível!
Desprotegido e nú, vagueia seu ser entre horrores e maravilhas.
A caneta lhe vale o reinado e por ela grava cicatrizes no papel dos corações humanos
Tateia na escuridão do próprio cérebro e com incrível agilidade desencrava peças do inconsciente.
À luz de sua razão, em seguida, transborda nos quatro cantos do universo.


Nada tão calmo e vazio quanto um poeta transbordado,
nem tão ansioso quanto um poeta calmo e vazio!


Retorna no seu mergulho negro até que esgote o veio, sem satisfazer-se...
Esgotando um e mais outro procura preencher-se.
Novamente, vagueia e observa...
Expõe-se nú e desprotegido a horrores e maravilhas e deixa marcar seu espírito pela caneta da vida.
Abdica seu reino em favor de uma causa suicida,
mas quando volta vitorioso é coroado de novas pedras,
tornando a garimpar sua escuridão!



Nada tão obstinado quanto um poeta antes do mergulho,
nem tão forte e vivo quanto um poeta obstinado!


Porém, de tantos que são os horrores,
de tão sensível às maravilhas que é o espírito,
de tão exausto o corpo dos mergulhos;
nada é tão velho quanto um poeta cansado, nem tão triste quanto um poeta morto!


Fernanda Bega




escrito em 15 de julho de 1980- às 15hs- para Vinícius de Moraes que acabara de falecer.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Versinhos

Um ninho de tico-tico


Um ninho de tico-ticos feito com arte e primor
Achei no galho mais rico da minha roseira em flor.
Entre as flores, encoberto, ninguém sabe que ele existe
É preciso olhar de perto para que a gente o aviste
Lá no fundo somente três ovinhos, nada mais
O ninho tão fofo e quente que os três ovos estavam iguais!
Mas tive muito cuidado não toquei com meus dedinhos
Mamãe disse que é sagrado um ninho de passarinhos.


De: Maria Zalina Rolim (1869-1961)
Ensinado e recitado sempre por minha mãe...

sábado, 17 de janeiro de 2015

DONA LENY, 22 DE FEVEREIRO DE 1929.



Aprendi a recitar poesias com a minha mãe. No começo eram pequenos versinhos da tradição oral que todo mundo conhece, como:
Sou pequenininha de pernas grossas
Vestidinho curto papai não gosta.
Ou:
Sou pequenininha do tamanho de um botão
Levo papai no bolso e a mamãe no coração.
Todas as brincadeiras que ela nos ensinava tinham músicas ou versinhos e isso nos estimulava mais e mais. Rei, capitão, soldado, ladrão, moço bonito do meu coração!
Minha mãe era uma mulher alegre, bonita e sábia. Pouco estudo, muita intuição. Sempre ouviu muito rádio com a gente, apesar até de eu ser jovem para isso, lembro-me de ter escutado novela no rádio (isso porque tenho uma memória de elefante mesmo!).
Caridade, aprendi com ela também. Minha mãe nunca jogava comida fora, fazia pacotes e me mandava levar para os vizinhos mais necessitados, isso sem contar os pratos que servia na porta mesmo para os pedintes. Vou ser sincera que eu reclamava de ir levar as coisas...
Tinha uma casa muito pobre, cheia de crianças quase sempre peladinhas, um lugar feio e sujo. Claro a miséria é feia. Eu reclamava, mas ia. Uma vez, a casa desta família encheu d’água e meu pai trouxe todo mundo para nossa casa, o casal e cinco filhos. Mamãe improvisou um cômodo para eles na garagem de nossa casa e dividimos e multiplicamos as refeições até que se ajeitasse a casinha deles de novo. Outra vez, uma vizinha operou as varizes e não podia levantar da cama por uma semana e minha mãe, que não exigia que eu fizesse nenhum serviço doméstico em casa, me escalou a semana toda para ir lavar a louça do almoço da vizinha e ajudar a olhar uma filhinha pequena que ela tinha. Coisas que eu, adolescente de 13, 14 anos, não compreendia. Mas fui e fiz e tive uma incrível sensação de “utilidade”, o prazer de servir e fazer o bem por menor que ele fosse.
Sinto-me compelida a falar da vida da Dona Leny, de como ela foi sempre, principalmente porque a idade já forjou seus efeitos na personalidade dela... Pessoas que não a conheceram não podem imaginar como ela foi, o que fez nesta vida ( e também os que têm memória curta). É uma questão de justiça e gratidão falar de tudo que a minha memória guardou da nossa infância.
Minha mãe, por ter trabalhado em farmácia quando muito menina e aprendido muitas coisas sobre medicamentos, dosagens e seus preparos, ( naquela época eram mais medicamentos de manipulação do que industrializados), ela sabia aplicar injeções e, quando veio morar em São Paulo, vizinhos batiam no nosso portão a qualquer hora do dia pedindo que lhes aplicasse algum medicamento solicitado por seus médicos. Lembro-me dela colocando no fogo para ferver e desinfetar o seu Kit de seringa e agulha (não existia seringa descartável nos anos 60).
Nunca se negava a acudir ninguém por mais que estivesse ocupada! Também a procuravam para furar a orelhinha de bebês recém nascidos e dar o primeiro banho em vários bebês que nasciam na vizinhança e, por isso mesmo, cresci amando as crianças, os bebês. Claro que o primeiro banho dos meus filhos também foi privilégio dela.
Como não havia nem igreja na Vila Gustavo, quando ela se mudou para lá, mamãe teve a iniciativa de ensinar a catequese para as crianças na idade certa. Meu pai, então, arrumou uns bancos de madeira, colocou-os numa área coberta no fundo do nosso quintal e lá minha mãe formou várias turmas para a Primeira Eucaristia. Eu, ainda pequena demais para o catecismo, com 4 ou 5 anos, acompanhava as aulas e sabia de cor os 10 mandamentos, as orações, etc. Fiz anos de catecismo antes de chegar a minha idade certa.
Mamãe se divertia muito com a gente mesmo sem todos os brinquedos que se tem hoje, até mesmo sem a televisão em casa. E quando acabava a luz (o que acontecia com muita freqüência), a gente se reunia ao redor da chama da vela e fazíamos brincadeiras e cantávamos muito, muitas cantigas de roda e infantis até cansarmos. Aprendi a cantar a canção da velha a fiar, em que você vai enumerando e acrescentando vários novos personagens que incomodam a velha e no final tem que lembrar de todos, sempre com o último incluído. Vocês conhecem, né?
Cantávamos também aquela musiquinha da loja do mestre André, alguém conhece? E do gato na tuba. E recitávamos o poema sobre o gatinho chamado Cetim... Essa era a minha mãe, essa é a minha mãe que permanece cheia de idéias naquela cabecinha branca, já cansada, já esquecida.
Quem conhece os sete filhos que ela criou não pode imaginar que ela tenha sido amarga ou triste a vida inteira.
Meus irmãos são espirituosos, inteligentes, bem humorados e todos têm caráter e personalidade. Formaram-se e tornaram-se bons, excelentes pais e mães, maridos e esposas. Minha mãe tem toda essa bagagem vivendo por aí e fazendo este mundo um lugar melhor porque é disso que se trata viver bem e ser BOM. Viver bem é deixar o mundo melhor quando partirmos e isso não é o mais comum de acontecer. O mais comum é o que vemos a nossa volta, pessoas que vão se fechando numa concha de egoísmo, olhando para o próprio umbigo, para o próprio enriquecimento a qualquer custo e que deixam rastros de desafetos pela vida afora. Poucos terão as mãos cheias com tamanho tesouro ao reencontrar com o Criador, isso eu posso testemunhar.


... continua.