quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Aprendendo com Chicó, obrigada Ariano Suassuna


Uma pessoa do alto dos seus 85, 86, 90 anos tem lá seus direitos especiais.
Você a conhece de quando tinha 40 ou 50, mas era outra pessoa; a vida ainda não a tinha judiado tanto... E, se você já a conheceu idosa ou idoso, nunca saberá como ela foi, mas talvez consiga saber se desarmar-se diante dela e dedicar algum tempo em ouvi-la contar como foi, como era no seu tempo. Ainda que ela conte 100 vezes, será melhor do que fazê-la falar sobre o seu presente ou a realidade.
Ela, com certeza, lembrará com detalhes de fatos da sua juventude muito mais do que daquilo que aconteceu no dia de ontem. E, então, quando ela começar a contar como conheceu o primeiro namorado ou namorada, como foi a um baile com ele (ou ela) e quais as músicas que tocaram... aí sim você verá a amargura se diluindo da voz, do olhar, da alma. Lembrar do amor é quase amar de novo. Lembrar da própria inocência apaga as desilusões, momentaneamente.
Quando o idoso é rabugento é apenas um direito dele.
Quando o idoso é amargo é apenas um direito dele.
Quando o idoso perdeu o freio moral ou social e ficou mal educado é apenas os primeiros sinais de uma demência se anunciando... direito dele.
Mas quando o idoso é doce e lúcido é mérito dele, da sua sabedoria pessoal e da graça de Deus que lhe deu fardos mais leves durante a vida ou maior resistência aos trancos, porque a vida é como os testes de qualidade à que se submetem os materiais ou equipamentos ... ela maltrata, estressa, decepciona, envelhece e mata.
Assim é que, como diz o Chicó sabiamente, tudo que é vivo, morre.
Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.
(Em: O Auto da Compadecida)