terça-feira, 8 de dezembro de 2015

TARDE


Então, encontrei este texto de 1977, em meu garimpo em gavetas e caixinhas.
Escrevi isso numa dessas tardes daquele ano, vindo da escola.
Era um tempo em que eu andava uns dois quilômetros a pé para ir ao colégio. Tinha 16 anos e a vida se passava muito mais na minha cabeça do que em qualquer outro lugar. Dada à minha timidez, pouca coisa acontecia no mundo real e eu estava formulando a vida, ainda. Estava apaixonada e isso tornava o caminho quase uma travessia da infância para a vida adulta, pois ia bem devagar para admirar tudo, maravilhar-me com a natureza e descobrir que estar apaixonada me fazia amar todas as criaturas, todas as pessoas e viver em êxtase (e quase ser atropelada também)!
Meus pensamentos eram tão intensos que, em casa, eu achava que iam ouvi-los...
Achei alguns erros de gramática e de ortografia, claro... comecei frase com pronome, usei gírias, da época... Mas só me atrevi a corrigir alguma pontuação (não posso alterar o texto da Fernanda de 16 anos, não é mais meu, ou melhor é tão meu que me construiu, como mudá-lo?).


SP , 28 de Agosto de 1977.

TARDE

Fecho o s olhos, amor, e vejo os teus. Abro a boca, amor, e sorrio de nada. Te amo.
Andando na rua, canto canções em meu pensamento, faço orações em meu movimento, meus pés me levam certo... te gosto.
Choveu: o chão tá molhado, o ar cheira terra fresca e fértil; meus pés não vacilam levam-me certo e longe... Tem uma árvore; a pequena garoa renitente do inverno derruba, como no outono, flores lilases da primavera. É Deus. Tá ali, vivo, forte, grande, pequeno! Negando o calendário imutável, as estações distintas, reafirmando que a vontade D’Ele é ainda seguida pela natureza.
... Eu ando. Ando por sobre as flores que caíram, quando ainda estava ali atrás, ando num tapete que só Ele soube tecer. E mais uma vez serviu-me!
Você continua nos meus olhos fechados, nos meus lábios sorrindo; cantando em meu pensamento, orando em meu movimento, andando... Comigo, meus pés, meus olhos, meus lábios! Ouço ainda a garoa, que não me molha e o quebrantar das folhas e flores daí de trás que o homem tá pisando. Amo-o (o homem). Lembrei – me de você, te amo ( também).
Tijolo molhado, parado, cansado traz paz aos meus pés molhados, parados, cansados. Quero-te.
Tem pôr, sem sol... Tem luz.
Meus passos apressam-se sem hora: _ Senhora, que horas são? ( 17:30h).
Não corro, não correm. Não morro, mas morrem.
Cheiro alegria no ar, inspiração aos poetas viria, pra mim, só alegria.
Você tava lavando o carro na porta da casa de lá, você tá tocando um disco na discoteca de cá. É bom ver você nos outros; é bom ver os outros em você: amo a ambos.
Tem música. Cantada no pátio do colégio que passa, soada nos pneus do carro que riscam o chão quase varam; param. Tremi, não era você ou era? Fingi não amar o homem do Carro, fingi não amar minha preocupação. Era você, devia ser. Na certa, tremia agora o homem que eu não amei... Nem sei se chora.
Passou. Rachou meu amor por você, trincou. Também, eu nem esquentei em repreender o homem que eu não amei que quase varou, riscou, soou
( tremia agora, na certa).
Mas, amo-te. Ainda é pôr sem sol, continua você em canção, pensamento; oração, movimento. Tem ternura, quente, cura. Aquece o pensamento, envolve o movimento: chega, para, que cara!
... Cansei. Cerrei os olhos; vi você por lá, parado, gamado, sorrindo.
Voltei. Pisei forte no chão passos de pés certos, sem hora, Senhora... Maria. Pensei: quantas Marias eu amo... benditas!
Cheguei. Suada, gamada, molhada, lavada, to aqui. Pequei, chorei, sorri, rezei... eu amo você como sempre te amei. No homem do carro, no pingo da chuva, na rua que escalo, na lua.
Deus, é noite!!

2 comentários:

  1. É engraçado, hoje, reconhecer a Fê aos 16 anos, neste texto que nos remete a um tempo feliz. Voce continua a menina feliz que me cativou ...como previu Saint-Exupéry

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    1. A Fê aos 16 era uma ebulição de idéias complicadas com sentimentos muito simples. Hoje, acho que sou toda complicada apesar de buscar a simplicidade incansavelmente. Obrigada, Sylão, meu mais antigo leitor.

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